Um filme sobre intimidade. E um filme sobre a família. As luzes de um verão fala disso, dessas duas coisas meio opostas, meio juntas: o que há, afinal, de mais pessoal e íntimo que temos são os laços familiares, e, talvez por isso, são justamente nessas relações que os limites entre a individualidade de cada um tendem a se chocar mais intensamente.
Não é o que acontece aqui, e talvez seja sobre isso que o filme vietnamita dirigido por Tran Anh Hung(de O Cheiro de Papaia Verde), queira nos falar: não dos momentos de choque, mas as interseções entre esses dois mundos, que se ligam, voluntariamente ou não, de maneira umbilical. Não por acaso é uma história de irmãs. Unidas por uma propriedade em comum, um bar herdado, elas se reúnem para comemorar o aniversário de morte do pai.
Cada uma por sua vez, tem uma trajetória bem particular. Suong possui um estranho caso extra-conjugal, onde não troca uma palavra com seu amante, enquanto sofre ao mesmo tempo por ser traída pelo marido, que faz constantes viagens por causa da profissão de fotógrafo. Já a do meio, Khan, possui o típico relacionamento perfeito, dona de casa que cuida do jardim e do marido, que é escritor. A caçula, Lien, a única solteira, dissimula uma paixão pelo irmão gêmeo, Hai, com o qual divide um apartamento.
São, portanto, muitos focos e tramas a serem exploradas, mas o que chama atenção, mais que o drama em si, é a maneira como somos convidados a acompanhá-los.
Sim, porque aqui não iremos ver, observar, mas fazer parte, estar em companhia de. É essa a maneira com que Hung nos guia em sua narrativa, seja através da câmera extremamente sensível ou da própria maneira de retratar essa história cheia de tramas. Uma decisão acertada, por exemplo, é a de se limitar a falar somente uma semana na vida dessas personagens, justamente aquela entre o aniversário de morte da mãe e de nascimento do pai.
O primeiro evento é o responsável pela reunião familiar no bar da família, o que possibilita não uma aproximação, que já existe, mas um momento de encontro que a potencializa. No decorrer do ritual de preparar as refeições e a festividade, dá-se então o ápice dessa enquanto depenam e tiram as esporas de uma galinha, em um plano de delicadeza ímpar. A câmera, que quase sempre estivera em planos médios, se torna bem próxima, foco bem fechado, como que se nos aproximássemos também para participar desse pequeno ritual em que as irmãs trocam intimidades enquanto descalpelam uma galinha.
Essa aproximação, entretanto, é feita de maneira muito delicada, não buscando penetrar intrusivamente na vida das personagens, mas acompanhando o tom de cada situação. Quando se chega ao ápice dramático, por exemplo, o momento em que o marido revela sua traição à Suong, não só a câmera se mantêm distante do rosto dela, como uma elipse providencial nos fornece apenas o antes e o depois do acontecimento . Vemos então a irmã correr aos prantos do quarto e encontrar com uma das irmãs no corredor. Constrangida, resolve voltar para o lugar onde estava o marido.
Assim como a direção de fotografia, o que o próprio roteiro parece nos dizer é que há momentos que são solitários, imperturbáveis, por mais que a irmã ou nós espectadores tenhamos intimidade com a personagem.
Um ponto delicado em que o filme podia ter enveredado seria o de, pela opção de se concentrar nas irmãs, menosprezar a importância dos maridos, que, afinal de contas, são também parte da família. Mesmo que com um espaço menor na história, acompanhamos pequenos momentos importantes de suas vidas, como do flerte do escritor com uma desconhecida, e a família que o fotógrafo mantêm em uma ilha, seu refúgio de paz.
Por último, vale a pena chamar atenção pra mis em cene do filme, que junto com a utilização de planos fixos e da movimentação de cena, talvez reflexo desse mesmo respeito e cuidado com as vidas que desfilam em frente da tela. Assim, não é preciso corte ou que a câmera acompanhe a ação; ela mesma vai se revelando pelo seu percurso na tela, que possui quase sempre várias camadas e profundidade de campo, ótima fotografia de Pin Bing Lee(o mesmo de Amor à Flor da Pele, de Wong Kar Wai) . Luzes de um verão, é, portanto, um filme sobre a vida, que procura enfocar a intimidade quando esta se apresenta e não cavoucando emoções.
Se há algum momento em que esse recorte de sentimentos parece exagerado ou excessivamente montado, talvez seja justamente no penúltimo plano, onde as irmãs reunidas contam seus dramas e irrompem num choro convulsivo, catártico. Mas há ironia nisso tudo, pois o exagero não é do diretor, mas das próprias personagens.
Talvez Luzes de um verão seja, afinal, um filme sobre como juntar-se e reeguer-se na dor. Não por acaso no último plano do filme, na chuva, a filha mais jovem lembre-se que naquele dia o pai aniversariava, o que remete a cena do primeiro encontro das irmãs, uma semana antes: a comemoração da morte do pai. E Lien sai de quadro, sorrindo.