fim de mundo com lan-house

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domingo, 21 de fevereiro de 2010

Um olhar no paraíso, de Peter Jackson

Demorei um tantinho pra publicar esse post, que escrevi pouco depois de assistir ao filme, por isso acabou saindo uma coisa mais impressionista e menos fechadinha.

Primeiro tenho que dizer que é uma pena que nenhum dos pôsters oficiais do filme faça jus à beleza de suas melhores cenas: aquelas em que a menina Susie, morta por um serial killer pedófilo, vaga por um céu psicodélico, meio kitsch, mas extremamente lúdico. Difícil descrever em palavras o que é puramente visual, mas creio que esse é justo um dos pontos mais fortes do filme. Mas cinema não é só plasticidade e os maiores pecados de Jackson residem justamente em, aparentemente, acreditar que sim. Daí que, em praticamente todos os planos, tenta dar significados plásticos àquilo que já estava explícito, ou, bem pior, ao que estava implícito na dramaturgia.

Não basta que Susie fique extasiada ao receber o primeiro contato com o garoto pelo qual estava apaixonada: a imagem precisa transpirar por todos os poros esse maravilhamento. Então dá-lhe luz em seu rosto, uma lente teleobjetiva que ressalta ainda mais sua expressão e a faz quase sair da tela, o contraplano com o garoto igualmente reluzente com caixos perfeitamente feitos adornando o rosto de príncipe encant... Já cansou de tanta descrição? Mas é justamente isso que Jackson faz, sem palavras, usando apenas a imagem: descreve exaustivamente cada ação e respectiva afecção.

Nessa sequência, apesar de kitsch - deliciosamente kitsch, na minha opinião - há uma justificativa diegética bastante razoável: estamos acompanhando não só a história do ponto de vista de Susie, como estamos percebendo o mundo pela sua maneira também. E aí vai o rebate para outra provável crítica sobre a representação do céu no filme: antes de clichê ou pouco imaginativa, não se trata do céu, corrigindo, mas do limbo - interseção entre a terra e o paraíso por onde vagam os espíritos ainda não completamente desligados daqui - e por isso tudo que ali se apresenta é na verdade a imagem que a garota tem do céu, e não o céu em si. Por isso a bola gigante que roda na cachoeira, as colinas arredondadas, o cenário pueril, resultado de uma mente que acaba de sair da infância - Susie morre em 1973, com apenas 13 anos.

A sequência em que barcos dentro de garrafas ''navegam'' na praia é uma das mais interessantes e ilustrativa dessa construção de um paraíso segundo as referências da garota (seu pai constrói barcos dentro de garrafas). E as cenas de Susie no limbo são justamente as mais bem sucedidas no uso dessa afetação que permeia todo o filme de Jackson. As sequências no ''mundo real'', porém, acabam tornando-se quase sempre disperdiçadamente redundantes. É o caso do insistente close nos olhos do assassino da garota, sempre acompanhada de uma trilha tensa. O serial killer parece advinhar pensamentos e observar o tempo todo e todas as vezes que alguém lhe dirige um olhar de suspeita, mesmo que o assassino esteja dentro de casa ou distraído com alguma coisa.

A afetação, infelizmente, acaba contaminando o roteiro, com soluções apressadas que quebram a coerência da narrativa, explicitada muitas vezes pela própria narração em off da protagonista (mais um recurso, usado aqui inadvertidamente, que resulta em redundância). Um aspecto interessante, mas que não muito bem sucedido, foi uma certa tentativa de brincar com os gêneros, intercalando passagens de grande tensão com outras de distensão da narrativa e quebra de clímax, como acontece no quase desfecho final, quando a irmã de Susie consegue a clássica prova do crime. Feita apenas em momentos pontuais, o procedimento se perde novamente na narrativa e não colabora para seu desenvolvimento.

O maior problema de Um olhar no paraíso talvez seja se comportar justamente como o oposto do limbo: em vez de uma interseção entre terra e céu, temos uma narrativa partida entre Susie, no plano etéreo, e seus familiares no plano terreno. Sua interação é muito pequena e se dá apenas em arroubos de intervenção da protagonista, pois o que prevalece são suas quase aparições, em vez de se tentar acompanhar, em ambos os planos, o processo de luto dos personagens: de seus parentes pela sua perda e de Susie, por sua própria vida.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Deixa ela entrar, de Tomas Alfredson


Se a figura do vampiro já foi encarnada por criaturas monstruosas, lordes galantes e mais recentemente como inofensivos e castos adolescentes da geração emo, Deixa ela entrar traz uma abordagem fresca e nem por isso menos fiel à mitologia vampiresca que tanto fascina o ocidente. O que está posto dessa vez é um drama e um romance pré-adolescente contado com doçura, mas nem por isso abandonando o caráter obscuro do mito.

Dessa vez o protagonista é Oskar, garoto recluso e tímido vítima de bullying na escola. Já Eli, sua vizinha, é uma vampira que sobrevive às custas dos assassinatos cometidos por Håkan, que retira o sangue de suas vítimas para servi-lo como alimento para Eli.

Faz tempo que queria escrever sobre Deixa ela entrar, mas só agora que comecei a ilustrar os posts desse blog com pôsteres, em vez de imagens dos filmes, tive uma idéia mais clara de que caminho abordar.

Trata-se de um filme de terror. Esse é o ponto do qual eu gostaria de partir, e o pôster acima, mais do que qualquer outro usado como divulgação, deixa isso bastante claro. Se a versão brasileira do cartaz (bem parecida com a americana) deixa apenas a imagem fantasmagórica da vampirinha Eli como indício do teor sobrenatural do filme, o cartaz original (acima), explicita a violência e sua ligação com o relacionamento entre os dois jovens: acima de tudo, como uma sombra onipotente, paira Eli; Oskar, garoto aparentemente inocente, mas com sede de vingança, está localizado mais ou menos perto de seu coração, enquanto no primeiro plano, o mais baixo, temos o corpo suspenso de uma das vítimas de Håkan.

Os três elementos atingem uma relação íntrinseca que perpassa toda a narrativa. A aproximação do casal mirim, por exemplo, ocorre apenas quando a vampira assiste o garoto esfaquear uma árvore enquanto verbaliza seu ódio contra seus agressores na escola. E é de certa forma através da relação entre a impotência do garoto e os poderes sobrenaturais de Eli que se constrói a atração entre eles e mesmo a empatia do espectador com o relacionamento dos dois. Eli deseja protegê-lo, e Oskar, indefeso, agradece essa proteção.

Ou não seria tão simples assim? Afinal, o que provavelmente a vampira precisa é de alguém que cumpra o papel de seu guardião, visto que ela não pode sair na rua durante o dia, nem expor-se tanto sozinha assassinando os vizinhos sem levantar alguma suspeita. O que o filme leva a crer, portanto, é que Oskar em breve assumirá o papel do serial killer companheiro de Eli, e os dois sobreviverão, sabe até quando, com essa parceria.

É claro que não é apenas o puro desejo ou potência de violência que junta os dois personagens. Eli é provavelmente tão excluída quanto Oskar, e também não teve culpa da violência à qual foi submetida (ter sido transformada em vampira ainda quando criança), como o garoto não tem do bullying que sofre na escola. Oskar tem pais separados e uma mãe aparentemente pouco presente; Eli sequer pais possui. Ambos estão, portanto, sozinhos no mundo. Mas o que sela o seu relacionamento é o desejo de vingança, ou ao menos de sobrevivência em um mundo cada vez mais marcado pela violência.

Poderia falar sobre muitos outros aspectos do filme, especialmente o cuidado visual, a maneira como Alfredson reatuliza os clichês do vampirismo, matendo-se fiel a muitas de seus elementos característicos, mas de maneira sóbria e bastante arrojada. A fotografia, efeitos especiais e direção de arte do filme são um deslumbre à parte, e provavelmente apenas ajudam a levantar o incrível jogo de sedução armado pela história, por Eli e talvez até pelo próprio cinema em relação à nós, supostamente tão incautos espectadores.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Preciosa, de Lee Daniels


Talvez a maior armadilha ao tentar analisar Preciosa seja contrapor a estética realista ao tom de fantasia e virtuosismo que se alternam em tela, contrapondo à realidade cruel de Precious ao mundo de fantasias em que ela se refugia. Negra, pobre e grávida pela segunda vez de um filho de seu próprio pai, Precious se imagina como uma estrela do canal de música negra americano BET, enquanto é violentada pelo seu progenitor.

Apesar de, nesse momento especialmente, tais estéticas parecerem completamente apartadas, a maneira como a fantasia de Precious adentra a imagem pode ser bastante elucidativa: o teto do quarto em que se encontra começa literalmente a ruir e, acima dele, encontram-se as imagens da garota, vestida em roupas de luxo, sendo alvos de flashes e do carinho de um príncipe encantado do hip-hop. Ora, pois as barreiras entre as duas estéticas talvez não sejam tão rígidas assim, e possam desmoronar com um pouco mais de atenção: se é artificial o mundo encantado em que a protagonista se refugia, tanto assim o é a estética realista apregoada por alguns críticos na maneira com que a crueza de seu mundo é retratado.

A sala do apartamento em que a mãe da garota passa os dias vendo TV, sempre suja e muito escura, em tons amarelados, está diametralmente oposta ao que representa a escola alternativa que acaba mudando sua vida. Localizada alto de um prédio cujo enquadramento diagonal ressalta ainda mais sua altura, estetiza a ascenção de Precious tanto quanto o apartamento no qual nunca se abrem as janelas estetizam sua condição de pobreza. Praticamente uma gata borralheira, vide a exploração da mãe/madrasta má. Sim, estamos em um, mesmo que improvável, conto de fadas.

Ora, e qual o problema? Atualizar esse tipo de narrativa com uma princesa negra, gorda e cujas dificuldades são o déficit de aprendizado e uma filha com síndrome de down, sem falar do pai abusivo e a mãe permissiva e cruel, poderia parecer, além de irônico, extremamente indigesto. E a ironia realmente está toda ali, mas também preenchida de afeto. A itenção, menos que denegrir a personagem, é escancarar todo o mundo de valores perversos que atravessam sua história e estão incutidos até mesmo na própria personagem. Exemplo óbvio está na desconcertante - e quase trash - cena em que Precious penteia os cabelos em frente ao espelho e o que vê é uma garota branca, magra e loira. Mas a ironia também está presente de maneira mais sutil, quando a jovem expressa a preferência de ter um namorado ''de pele clara'', e o que vemos na tela é um rapaz negro, mas ''não tão negro''(apenas uma provocação, visto que a expressão não faz o menor sentido).

Se Precious tenta de certa forma resistir e almejar dignidade ao se imaginar como uma diva negra do R&B, não deixa de mimetizar os valores de uma certa indústria dos sonhos tipicamente branca, e aí que está a beleza de Preciosa, o filme. Pode-se tratar de um líbelo de libertação, de esperança mesmo quando embebido no pior do mundo, mas não deixa de revelar as contradições internas e externas da condição de excluído na nossa sociedade.