fim de mundo com lan-house
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quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010
Preciosa, de Lee Daniels
Talvez a maior armadilha ao tentar analisar Preciosa seja contrapor a estética realista ao tom de fantasia e virtuosismo que se alternam em tela, contrapondo à realidade cruel de Precious ao mundo de fantasias em que ela se refugia. Negra, pobre e grávida pela segunda vez de um filho de seu próprio pai, Precious se imagina como uma estrela do canal de música negra americano BET, enquanto é violentada pelo seu progenitor.
Apesar de, nesse momento especialmente, tais estéticas parecerem completamente apartadas, a maneira como a fantasia de Precious adentra a imagem pode ser bastante elucidativa: o teto do quarto em que se encontra começa literalmente a ruir e, acima dele, encontram-se as imagens da garota, vestida em roupas de luxo, sendo alvos de flashes e do carinho de um príncipe encantado do hip-hop. Ora, pois as barreiras entre as duas estéticas talvez não sejam tão rígidas assim, e possam desmoronar com um pouco mais de atenção: se é artificial o mundo encantado em que a protagonista se refugia, tanto assim o é a estética realista apregoada por alguns críticos na maneira com que a crueza de seu mundo é retratado.
A sala do apartamento em que a mãe da garota passa os dias vendo TV, sempre suja e muito escura, em tons amarelados, está diametralmente oposta ao que representa a escola alternativa que acaba mudando sua vida. Localizada alto de um prédio cujo enquadramento diagonal ressalta ainda mais sua altura, estetiza a ascenção de Precious tanto quanto o apartamento no qual nunca se abrem as janelas estetizam sua condição de pobreza. Praticamente uma gata borralheira, vide a exploração da mãe/madrasta má. Sim, estamos em um, mesmo que improvável, conto de fadas.
Ora, e qual o problema? Atualizar esse tipo de narrativa com uma princesa negra, gorda e cujas dificuldades são o déficit de aprendizado e uma filha com síndrome de down, sem falar do pai abusivo e a mãe permissiva e cruel, poderia parecer, além de irônico, extremamente indigesto. E a ironia realmente está toda ali, mas também preenchida de afeto. A itenção, menos que denegrir a personagem, é escancarar todo o mundo de valores perversos que atravessam sua história e estão incutidos até mesmo na própria personagem. Exemplo óbvio está na desconcertante - e quase trash - cena em que Precious penteia os cabelos em frente ao espelho e o que vê é uma garota branca, magra e loira. Mas a ironia também está presente de maneira mais sutil, quando a jovem expressa a preferência de ter um namorado ''de pele clara'', e o que vemos na tela é um rapaz negro, mas ''não tão negro''(apenas uma provocação, visto que a expressão não faz o menor sentido).
Se Precious tenta de certa forma resistir e almejar dignidade ao se imaginar como uma diva negra do R&B, não deixa de mimetizar os valores de uma certa indústria dos sonhos tipicamente branca, e aí que está a beleza de Preciosa, o filme. Pode-se tratar de um líbelo de libertação, de esperança mesmo quando embebido no pior do mundo, mas não deixa de revelar as contradições internas e externas da condição de excluído na nossa sociedade.
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